CONFISSÃO: REVELAÇÕES DESCONCERTANTES SOBRE A VIDA



Por: Raimundo Nogueira 

Título: Confissão (92 p.)
Autora: Maria de Abreu
Editora: Editora Valer
Local / ano: Manaus, 2012

Quando a autora me ofertou um exemplar de Confissão, instou-me, como quem quisesse me fazer um pedido prévio de desculpa, a não me escandalizar com seus “poemas rebeldes e loucos”. A recomendação, como toda enunciação de caráter proibitivo, aguçou mais ainda minha curiosidade e elevou o meu nível de interesse pela leitura do livro.

Verdade é que, por longos séculos, a mulher - com raras exceções, a exemplo de Safo, célebre poetisa grega – esteve confinada ao papel de musa para os poetas, representando, invariavelmente, a figura de mulher casta, bela, recatada, mãe e/ou esposa dedicada.Superado o confinamento, a duríssimas penas, a mulher passou a acumular o papel de musa com o de poetisa. A moral machista, porém, tolerando-a, delimitou seu espaço criativo pela censura da linguagem e de temas, aqui e ali violado por poetisas como Flor Bela Espanca.

De fato, Confissão não é um livro de poemas bem comportados, que versem sobre campos floridos, jardins bem cuidados, lagos serenos, casais perfeitos, amores plenos, paraíso post-mortem e historias sempre com final feliz. A linguagem de Confissão, também, não tem a reverência dos textos canônicos nem a formalidade dos textos oficiais.

Na poética de Maria de Abreu, “rosas e gerânios / deuses e demônios / amor e dor / tudo passa”. O tempo, para o eu lírico, é uma experiência pessoal que só pode ser apreendida na perspectiva da relatividade, uma vez que se dá “nas longas noites frias / e nos longos dias”. O mundo não é um lar paradisíaco, mas um lugar “onde as ervas daninhas cobrem / a terra mais dura / a terra mais seca / a terra mais árida / onde habitam os insetos / mais nocivos / mais abjetos”. A vida, paradoxal e aparentemente destituída de propósito (“para que sentido / se o pó é divino / e tudo passa?”), provoca, a princípio, uma certa perplexidade (“Como é belo o mundo! / feliz / iluminado”), mas, na travessia do tempo, produz um cansaço existencial que provoca no eu lírico um enjoo de tudo: “da paisagem outonal / da montanha azulada / da maçã perfumada / da nuvem ade jante / do sol ardente”. O eu lírico, tudo indica, não apenas vê esta vida como ilusão, mas também não nutre esperança para além da morte, pois “a vida que pensamos ter vivido / não foi vida / não foi nada / foi engodo”.

Contudo, embora vivencie a angústia própria da condição humana, o eu lírico na poética de Maria de Abreu não é um ente desesperado, tendente ao suicídio ou ao holocausto universal, incapaz de gestos de gentileza ou de sentimentos nobres. Pelo contrário, o amor não só é possível como é eterno e único (“E os olhos com que me olhas / sãos olhos que quero olhar / e assim não quero ver / ninguém mais em teu olhar”), a morte, embora pavorosa, não deve ter um fim triste (“Uma coisa ainda peço / Não chorem / Mas riam por mim”), o cotidiano, mesmo tedioso, deve ser vivido com intensidade (“Mas uma segunda-feira / que se oferece de novo inteira / devemos vive-la / literalmente”).

Esse equilíbrio na apreensão do significado da vida não exige razões e sentidos externos a própria existência, de modo que as grandes interrogações sobre a origem e destino do homem são irrelevante: “Não é preciso perguntar / porque alguém / vem / por que alguém / vai / [...] / Não é preciso perguntar.”

Quem conhece a autora - uma criatura inteligente, culta e de convivência agradável –, mas não tem familiaridade com os processos da criação poética, provavelmente se escandalize com a poética casmurra, mas autenticamente realista, de Confissão, pois não reconheceria a autora na voz que fala nos poemas. É que autor e eu lírico não se confundem: o autor é a pessoa física com uma biografia, uma história de vida, enquanto que o eu lírico é um recurso, um ente fictício que liberta o autor de seus limites, possibilitando-lhe vivenciar experiências diversas das próprias, e viabilizando a criatividade e pluralidade dos sentidos próprios dos gêneros literários.

Essa espécie de “realismo existencial” que se contem de Confissão, longe de suscitar escândalo, no sentido mais frequente do termo, desencadeia, isto sim, um salutar tumulto nas perspectivas tranquilas e sedimentadas de nossas esperanças comuns, pelo desafio de que o sentido e o destino da vida e do mundo é um projeto que se efetiva pelas escolhas que, como indivíduos e coletividade, fazemos ao longo do percurso histórico.

Raimundo Nogueira é advogado, cientista político, escritor e professor 

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