Cidade sem lei

Administração pública
CIDADE SEM LEI
Por Raimundo Nogueira
Não estou me referindo a uma daquelas pequenas cidades do velho oeste americano, retratadas nos filmes de bag-bag. Também não me refiro a uma cidade hipotética como as que aparecem naquelas películas apocalípticas que projetam o mundo pós-terceira guerra mundial, completamente reduzido à terra de ninguém. Nem tampouco refiro-me a favelas de grandes cidades do mundo contemporâneo, como Rio de Janeiro, onde o Estado não consegue entrar com seu aparato institucional, eis que são territórios dominados por traficantes e milicianos.
Não.
Refiro-me, isto sim, a nossa querida Princesinha do Solimões. Não estou dizendo que a cidade seja desprovida de um estrutura legal que regule as relações dos indivíduos entre si e com o ente federado. Pelo contrário, somos pródigos em legislação, sendo certo que o legislador manacapuruense legiferou sobre quase tudo: do dia oficial do cirandeiro (Lei nº 020/2002) à exigência de grafia legível em laudos e receitas médicas (Lei nº 291/2014).
Não obstante, a nossa Princesinha do Solimões é uma cidade que padece de anomia, portanto, é uma cidade sem lei. O conceito de anomia foi formulado pelo sociólogo francês Émile Durkheim (1858-1917) e significa ausência ou desintegração das leis em consequência de patologias sociais, como o enfraquecimento da autoridade e a exacerbação do individualismo.
Nesse sentido, se eu pedisse um exemplo de meu velho e bom amigo Venâncio Moreira de Freitas, o mais importante líder popular que Manacapuru já conheceu, ele me apontaria de imediato a questão das calçadas. Embora o assunto esteja regulado no Código de Obras do município (Lei nº 005/1993), constroem-se descaradamente sobre as calçadas ou, na área comercial, ocupam-se o espaço reservado aos pedestres com caixas de som ou de mercadoria. Andar a pé no centro da cidade, pelo menos desde os anos de 1990, é um exercício de alto risco.
Um outro exemplo – segundo um médico sanitarista, também meu amigo, que não gostaria de ter o nome aqui mencionado - são os animais criados soltos nas ruas, os cães principalmente. Nos lugares públicos, como feira e praça de alimentação, cães transitam entre consumidores, disputando sobras de alimentos, tudo como se fosse a coisa mais natural das galáxias. Esses animais, muitos deles doentes, eliminam nas vias públicas material biológico e excrementos – urina e fezes –, expondo a população à doenças graves, como se não houvesse lei local proibindo que animais vivam soltos nos logradouros públicos (Lei nº 141/2010)
Um terceiro exemplo é a emissão de sons e ruídos que, direta ou indiretamente, ofendem à saúde, à segurança e ao bem-estar da coletividade. Quem já não passou uma noite em claro (tendo que enfrentar no dia seguinte uma cansativa jornada de trabalho) por causa do som e da algazarra de um bar ao lado de casa? Quem, ainda, já não teve o sossego e a paz comprometidos por causa de um pancadão nas proximidades de sua residência, principalmente nas noites de final de semana ou de feriados? Quem, outrossim, já não se acabrunhou por causa dos carros de propaganda volante naqueles horários sagrados do cochilo de meio-dia ou da leitura no final de tarde? No entanto, a Lei nº 161/2011 disciplina o horário de funcionamento dos bares, boates, clubes, similares, lojas de conveniência e estabelecimento comerciais denominados “24 horas”. E a Lei nº 363/2016 proíbe o funcionamento dos equipamentos de som automotivo, popularmente conhecidos como paredões, nas vias, praças e demais logradouros públicos no âmbito do município.
Os exemplos e casos, abundantes como jaraqui na piracema, poderiam ser narrados ao infinito se isso não fosse cansativo e inapropriado para este tipo de gênero textual.
Parece inegável, portanto, que a Princesinha do Solimões é mesmo uma cidade sem lei, porquanto as que existem no papel foram, no transcurso de décadas, afrouxadas e desintegradas por força de um conluio entre administração omissa e cidadania entorpecida, o que me traz à memória uma curiosa observação do Pe. Norman J. Muckerman, missionário americano, na primeira visita que fez a esta boa terra, em 1945:

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